Meu Poder

Giovanna Basso
3 min readMay 9, 2021

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Era uma época esquisita e turbulenta; eu tinha sido eletrocutada e não sabia o que estava fazendo num hospital.

Desde muito pequena, talvez com sete ou oito anos de idade, eu sabia que queria ter um poder, uma ambição pouco comum para uma menina tão jovem, disseram. Mas aos doze anos, o que menos tinha era influência. O pouco poder que uma adolescente podia ter afundou num hospital. Eu era apenas uma “aborrecente” rebelde, ingrata, egoísta, impertinente, metida a sabe-tudo, revoltada, tosca, fraca que se recusou ir no nascimento do seu primo. Minha tia tinha dado à luz a um menino! o único homem da família, poderoso por nascença e com direito a ser mimado! Ele não podia ter nada que fosse “feminino”. Beber de copo rosa? Jamais! Escovar o dente com pasta da Barbie? Nunca!

De mil experiências que temos, lembramos, quando muito, uma única. Entre todas as experiências impactantes, também existem aquelas ocultas que, imperciptivelmente, conferem a nossa vida a sua forma, a sua coloração, e no, caso, a sua injustiça. Meu pai trancava minha irmã quando ela discordava dele, eu era mandona por tomar a frente, meu avô não levava o prato sujo na pia, olhos me encaravam quando eu andava na rua, não tinha uma referência feminina, não podia chorar de cólica, nem falar algo errado para não apanhar.

Fui submetida aos poucos a um sentimento: raiva! CÓLERA! Daquelas que faz a boca tremer, o punho cerrar, o coração acelerar e o corpo paralisar com a triste iminência da impotência, afinal, o que uma menina pode fazer? Ficar de cara amarrada?

E pela primeira vez, tanto o diabinho quanto o anjinho no meu ombro estavam de acordo, por que não experimenta mostrar-lhe a sua ira? Foi o que eu fiz, mas da maneira mais “feminina” possível: criando.

Foi a raiva embutida que me levou a compilar todas essas experiências que em novembro de 2020 culminaram no meu livro Adolê Sente: o mundo na perspectiva de uma jovem audaciosa”, trinta e duas crônicas sobre desigualdade de gênero, autoestima, imagem corporal, menstruação e amizade. O livro está disponível em todas as livrarias do país e também em Portugal, Angola e Cabo Verde. É a prosopopeia de uma época esquisita e turbulenta, mas com muito potencial. Essa mesma motivação me levou a fundar o Nations Girl Up, o primeiro clube do Girl Up em Brasília, liderar uma campanha em favor de absorventes de graça em escolas públicas que resultou na aprovação da lei 6779/21 e conceder mais de 300.000 dólares para organizações com o Global Fund For Women.

Mas e agora?

Meu nariz cresceria se falasse que não tenho mais raiva. Ainda estou lá, naquele distante lugar do passado, nunca saí de lá, vivo espalhada no passado dominada por uma cólera incessante. A ira nos ensina a ver quem somos. E eu sou rebelde, impertinente, metida a sabe-tudo, revoltada, tosca, mas poderosa. Poderosa, porque sei que não importa o que eu faça, o que realmente vale é seguir o que acho verdadeiro. Poderosa, porque o descontentamento sem fim é a minha motivação a ser uma referência para várias outras jovens. Sinto que minha vocação é a raiva, não por eu ser revolucionária, mas porque não posso simplesmente ignorar a irracionalidade nem fechar os olhos nem conceder para a injustiça.

E este é o meu poder.

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Giovanna Basso
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